Muitas pessoas já ouviram falar ou conhecem algum cachorro que já teve leishmaniose. O que muitos não sabem é que a doença pode se manifestar de diferentes formas e atinge não somente os animais domésticos como os cães, mas também os silvestres e ainda o homem.

As leishmanioses são zoonoses, ou seja, doenças infecciosas naturalmente transmitidas entre pessoas e animais. Por meio da picada de fêmeas do inseto vetor infectado, denominado flebotomíneo e conhecido popularmente como mosquito palha, asa-dura, tatuquiras, birigui, dentre outros, o parasita infecta o homem. Os agentes etiológicos das leishmanioses são os protozoários do gênero Leishmania. As principais formas de manifestação são leishmaniose tegumentar (LT), que afeta principalmente a pele e mucosas, e a leishmaniose visceral (LV), que é a forma mais grave e atinge os órgãos internos, principalmente baço, fígado e medula óssea.

Embora a LT seja a mais frequente no país, a LV é a que mais preocupa devido à sua alta letalidade, acima de 90% se não tratada adequadamente e em tempo hábil. A forma visceral é caracterizada por uma doença crônica e sistêmica, tendo como principais sinais e sintomas clínicos a febre prolongada, emagrecimento, aumento do baço e do fígado, perda de peso, anemia e outras manifestações. Segundo a Organização Mundial da Saúde, cerca de 200 a 400 mil novos casos de LV humana (LVH) ocorrem no mundo todos os anos. No Brasil, a LVH está presente em todos os estados, com média de 3.500 novos casos por ano, e o coeficiente de incidência é de dois casos para cada 100.000 habitantes, segundo dados do Ministério da Saúde (MS).

O Serviço de Doenças Parasitárias (SDP) é o laboratório da Fundação Ezequiel Dias (Funed) que realiza o diagnóstico da doença no estado de Minas Gerais. Além disso, o laboratório é a referência nacional para o diagnóstico da LV, tendo a função de gerenciar a rede de diagnóstico da doença no estado e nacionalmente. Assim, o SDP capacita profissionais de saúde, realiza controle de qualidade e supervisão da sua rede diagnóstica e auxilia as secretarias de saúde do estado e o Ministério da Saúde nas tomadas de decisões sobre o programa de controle e vigilância da doença.

De acordo com a chefe do SDP, Letícia de Azevedo Silva, o Serviço realiza o diagnóstico da LV em humanos e testes confirmatórios em cães, pelo fato desses animais serem os principais reservatórios urbanos da doença. Para humanos, o diagnóstico para LV é realizado por meio de testes sorológicos, exames parasitológicos diretos e moleculares e exames parasitológicos e moleculares para LT. Somente no último ano, o SDP realizou mais de 24.000 exames de leishmaniose visceral em cães (LVC) e 12.000 exames de leishmaniose em humanos (LVH e LT).

A referência Técnica em LVH do SDP, José Ronaldo Barbosa, explica que, atualmente, o diagnóstico da LVC recomendado pelo Programa Nacional de Controle das Leishmanioses do MS é principalmente o sorológico e, portanto, está sujeito aos fatores limitantes desse tipo de exame, como possibilidade de reações cruzadas com outros patógenos e a não detecção em amostras com baixos títulos de anticorpos. “Essa última situação pode ocorrer em cães assintomáticos e em cães que estejam no estágio final da doença, devido ao imunocomprometimento causado pela LV”, detalha.

A recomendação de dois testes sorológicos concordantes pelo MS, para confirmar a presença da doença, aumenta a especificidade do diagnóstico. José Ronaldo ressalta ainda que a PCR é um método molecular com alta especificidade, que pode auxiliar no diagnóstico da LVH em casos específicos. “Isso ocorre principalmente quando é preciso confirmar a presença da Leishmania infantum em regiões onde não há casos confirmados de LVC (primeiro caso), ou no esclarecimento de casos com diagnósticos sorológicos divergentes de LVH”, acrescenta a referência técnica.

A Funed também participa da avaliação de kits diagnósticos a pedido do Ministério da Saúde. “O teste rápido imunocromatográfico foi um ganho muito grande para o controle da doença, visto que ele pode ser feito no município onde a pessoa reside ou nos hospitais onde o paciente está internado. Quando o resultado é reagente e há presença de sinais e sintomas clínicos, o tratamento já pode ser iniciado imediatamente”, reforça José Ronaldo.

Conheça mais sobre o trabalho da Funed no controle da leishmaniose visceral neste vídeo.

Avanço em pesquisas

A Funed desenvolve ainda pesquisas que visam trazer melhorias para o diagnóstico das leishmanioses. Um desses projetos, intitulado Desenvolvimento de PCR quantitativa pelo sistema TaqMan para o diagnóstico laboratorial das leishmanioses visceral e tegumentar foi aprovado na Chamada Demanda Universal 01/2021 da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (Fapemig). Segundo o pesquisador da Funed, Rodrigo Leite, coordenador do projeto, o objetivo do estudo é apresentar uma solução, ou seja, uma opção de diagnóstico, para uma doença negligenciada. A equipe do projeto é composta pelos pesquisadores Sérgio Caldas, Janete Santos, Job Souza Filho, Marcos Mol, Jacqueline Iturra, pelo estudante de mestrado Jose Bryan Rihs e pela estudante de veterinária Mariana Vilela.

O projeto foi motivado pela constatação do grande desafio que tem sido o diagnóstico da leishmaniose para os programas de controle da doença, em função da baixa sensibilidade e especificidade dos diagnósticos laboratoriais disponíveis. Nesse contexto, várias propostas utilizando a PCR como opção para um diagnóstico preciso e de fácil execução têm sido apresentadas. “O objetivo é desenvolver um diagnóstico de PCR quantitativa (qPCR) por TaqMan (sistema que utiliza uma ou mais sondas fluorescentes para possibilitar a detecção de um produto específico da PCR conforme esse se acumula durante os ciclos da reação)”, explica o pesquisador. Para o desenvolvimento da pesquisa, estão sendo utilizadas amostras de DNA oriundas dos painéis de amostras do Serviço de Doenças Parasitárias e swab conjuntival de cães.

Em um primeiro momento, definiu-se que Leishmania amazonensis, Leishmania braziliensis e Leishmania infantum, principais agentes etiológicos das leishmanioses no Brasil, seriam os alvos de detecção da pesquisa. Os testes realizados evidenciaram que somente aqueles direcionados à L. braziliensis e L. infantum obtiveram resultados satisfatórios, aspecto não observado para os dirigidos à L. amazonensis e ao conjunto genérico, construído para detecção de L. amazonensis e L. braziliensis, principais causadores da forma tegumentar da doença. Assim, o grupo de pesquisa pretende, daqui em diante, construir e testar novos ensaios para L. amazonensis, assim como dar continuidade aos ensaios para a padronização da técnica de qPCR, estabelecendo as curvas padrão dos parasitas em água e diluídas em diferentes amostras biológicas humanas e caninas.

Controle da doença

O Programa de Vigilância e Controle da Leishmaniose Visceral (PVC-LV) do MS prevê a realização, de forma integrada, de medidas de controle que visam ao diagnóstico precoce e tratamento adequado dos casos humanos, bem como o controle do reservatório canino e do vetor. Em 2021, o MS oficializou a proposta de incorporação da coleira impregnada com inseticida (deltametrina 4%) para controle da LVC em municípios prioritários, associada às demais ações do programa. São também recomendadas as atividades de educação em saúde e o manejo ambiental.

“Minas Gerais é um estado endêmico para a doença. Nós temos casos principalmente na região central (Belo Horizonte e região metropolitana), no norte do estado, na região centro oeste e na região noroeste. No entanto, de um modo geral, todas as regiões do estado estão propensas a apresentar casos da doença”, reforça José Ronaldo. Diante disso, o SDP/Funed, em parceria com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG) e com o Ministério da Saúde, realiza capacitações e outras atividades relacionadas ao diagnóstico desse agravo, tanto a nível estadual quanto nacional.

Além disso, o SDP conta com o Laboratório de Entomologia, no qual a referência Técnica é a bióloga Ana Lúcia do Amaral Pedroso. O Laboratório atua na Vigilância Entomológica do Estado e promove capacitações dos municípios relacionadas à LV e LT, realizadas pela equipe em campo ou nas dependências da Funed (como, por exemplo, captura e identificação de flebotomíneos, vetores da doença).

Segundo a subsecretária de Vigilância em Saúde da SES-MG, Hérica Vieira Santos, o estado contribui ainda com orientações para realização de atividades de rotina ligadas à vigilância das leishmanioses, bem como participa e acompanha trabalhos de pesquisa relacionados. “São também realizadas, mensalmente, a solicitação de alfacipermetrina para controle químico dos vetores e distribuído o inseticida de acordo com a situação epidemiológica e solicitações dos municípios mineiros. Por fim, a SES-MG realiza a distribuição de testes rápidos para diagnóstico da leishmaniose visceral canina e desenvolve campanhas de educação em saúde voltadas para a temática, com intuito de divulgar informações para a população”, explica a subsecretária. Hérica ressalta, ainda, a participação estratégica da SES-MG na busca por soluções relacionadas ao atendimento assistencial e à ampliação dos serviços de referência por meio da implantação dos Serviços de Atendimento Especializados Ampliados (SAE-Ampliado).

Em Belo Horizonte, as ações sistemáticas de controle da LV ocorrem desde 1994. Entre 2008 e 2014, foi vivenciada uma grande redução do número de casos humanos de LV (161 para 41) e de óbitos (18 para 5). No mesmo período, houve expansão qualitativa e quantitativa das ações de controle no município, que realizou, no ano de 2012, exame de leishmaniose visceral em 70% da população canina do município (202.896 coletas). Foram registrados 313 casos da doença de 2015 a 2021 (dados parciais), com média de 44 casos no período, e ocorrência de 49 óbitos.

Além da complexidade do controle da LV nas áreas urbanas, a incidência da doença pode estar associada a condições climáticas favoráveis ao aumento da população do principal vetor, Lutzomyialongipalpis, assim como à existência de ambientes propícios para formação de seus criadouros. Nesse sentido, a participação da população é imprescindível, uma vez que os ambientes devem ser mantidos limpos, com a retirada de folhas, troncos, fezes de animais e outros tipos de matéria orgânica, do acondicionamento correto do lixo.

Conheça mais sobre o trabalho da Funed na série sobre as Doenças Negligenciadas disponível no site da Funed.

Por ASCOM Funed

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