Quando se trata de crianças, brincar é um direito dentro do hospital. Como os pequenos nem sempre entendem porque estão limitados a um leito, passando por diversos procedimentos (muitos deles doloridos) e sem poder sair e se divertir, o jeito é improvisar e criar atividades que minimizem o sofrimento deles durante a internação. De uma forma lúdica, carinhosa e responsável, a equipe da Unidade de Tratamento de Queimados (UTQ) do Hospital João XXIII tem se esforçado para manter os sorrisos nos rostinhos mesmo com a Brinquedoteca fechada, por causa do risco de aglomeração nesses tempos de distanciamento social. A missão tem recebido ajuda de voluntários e, assim, vem garantindo momentos alegres para a meninada.
As atividades da Brinquedoteca foram suspensas no final de março. A coordenadora e pedagoga Jacqueline Dantas começou a reconstruir seu trabalho quando percebeu que existiam outras possibilidades. “Afinal, brincar é um direito da criança, mesmo que internada. Esses meninos passam por muitos procedimentos, fisioterapias, trocas de curativos, é preciso aliviar um pouco pra eles. Aqui, eles estão no momento mais difícil em suas vidas; muitas vezes, não só ‘quebrados’ fisicamente, mas também emocionalmente. Precisamos devolver o sentimento de que a vida continua”, conta Jacqueline.

Surgiram brincadeiras individuais, kits lúdicos (livros para colorir, lápis de cor, historinhas, passatempos), cartilhas de brincadeiras e até mesmo uma rádio, a “Rádio Ped FM”, que toca as músicas mais pedidas pelos ouvintes toda sexta-feira. A playlist “para tocar na rádio do seu coração” é preparada pela pedagoga e a expectativa é grande, com direito a pedidos de última hora, que são prontamente atendidos.

E todas as datas especiais são comemoradas na Pediatria da UTQ. A equipe se mobiliza para conseguir decorar e fazer uma festinha nos aniversários, Dia das Mães, Páscoa, com direito a lembrancinhas e doces (sempre observando as regras de distanciamento e as restrições médicas, claro). E como nem tudo é brincadeira, existe também a preocupação com a retomada das aulas depois que eles saírem do hospital. A Unidade oferece a “classe hospitalar”, que recebe as atividades enviadas pela escola do paciente e, se isso não é possível, a pedagoga desenvolve estímulos para que o tempo longe da sala de aula não seja prejudicial aos estudos.

A Pediatria da Unidade de Queimados do HJXXIII possui ala própria, com locais específicos para trocas de curativos, banhos e com equipamentos de proteção adequados. A média de ocupação chega a 12 crianças, atendidas por uma equipe que se dedica com carinho e a atenção necessária. Como lembra Jacqueline, “mesmo com as máscaras, a criança percebe se você está sorrindo, se seu olhar é carinhoso”.

Cinderelas e Batmans

Pouco antes do isolamento causado pela pandemia da covid-19, a equipe da UTQ conheceu um grupo de voluntárias que passou a fazer parte do esforço de dar alegria aos meninos e meninas internados. Os pequenos super-herois e as poderosas princesas puderam realizar seus sonhos. O Projeto “Criança que Sonha” doa fantasias às crianças quando elas recebem alta, escolhidas por elas mesmas. “Uma criança que sofreu queimaduras irá sair com marcas, que tendem a ficar por muito tempo. É comum, quando ela está saindo pela calçada, alguém olhar e comentar ‘coitadinho’. Isso abala muito a criança, causa constrangimento. Outra coisa é quando ela sai e alguém fala ‘olha o Batman”, o sorriso aparece na hora”, comenta Jacqueline.
“Eles são super-herois porque venceram uma batalha; sem dúvida, a escolha da fantasia não poderia ser melhor, afirma a pediatra Rosa de Lima Nascimento Bertolin, há 18 anos na UTQ do João XXIII. “Atuamos quando a criança precisa se estabilizar clinicamente, principalmente na fase aguda do início do tratamento. Tem casos que precisam ficar por seis meses internados. Iniciativas como essas fazem toda a diferença para uma criança que está sofrendo, traz felicidade. O que mais me marca é quando uma delas tem alta e não quer ir embora, pois se sentiu acolhida e teve momentos felizes aqui, apesar de tudo”, completa Rosa.

“Me sentia como se estivesse em casa quando minha filha estava internada na UTQ, tanto era o carinho da equipe conosco. Qualquer mãe ficaria sensibilizada com o apoio que todos davam para nós e aos nossos filhos. Incentivavam as brincadeiras, atendiam aos pedidos da meninada e nos passavam otimismo o tempo todo”, lembra Margarida Simão Eduardo, mãe da Maria Eduarda (13 anos), que trabalha na lavanderia de outro hospital, em Itabira. Duda escolheu ser a Frankie (Monster High) quando teve alta (foto).
“Criança que sonha”, criança que fantasia

O projeto “Criança que Sonha” foi criado no final de 2017 e seu objetivo inicial eram as crianças em tratamento de câncer. Com um maior número de voluntárias e doações, foi possível ampliar para outros hospitais, como o Hospital João XXIII e o Hospital Infantil João Paulo II, da Fhemig, entre outros da capital. Uma das fundadoras, Maria do Rosário Abreu Mendes (a Dainha), explica a maior motivação da sua turma: “Qualquer estímulo pode fazer uma criança esquecer sua dor, amenizar seu sofrimento. Pode tornar os momentos mais suaves e divertidos numa fase difícil”.

As fantasias são doadas, algumas confeccionadas ou customizadas, mas sempre atendendo aos desejos do “cliente”. Centenas de crianças já saíram dos hospitais como Elzas (Frozen), Homens-Aranha, Cinderelas, Wolverines... “É muito gratificante quando a gente entrega as fantasias, é muito amor envolvido, recebemos mais do que doamos”, admite a economista Nadja Ribeiro, que também gerencia as redes sociais do projeto.

“Maria Eduarda ficou apaixonada pelo vestido da Bela (“A Bela e a Fera”), que cobre bem as perninhas (que estão com as faixas para proteger a área lesionada) e tem muito brilho, que ela ama. Não o tira por nada, só pra lavar”, brinca Helena Viana de Carvalho, mãe de outra “Duda” (5 anos), que mora em Santa Luzia, e ficou 22 dias internada no João XXIII. Para ela, as pequenas distrações ajudaram a filha a se recuperar mais rápido. “Mesmo com poucos recursos, o pessoal do hospital se desdobra para alegrar as crianças, que sentem falta de brincar, colorir e da liberdade ao ar livre”, reconhece.

Espelhando o sentimento de todas as pessoas que se envolveram na iniciativa de trazer alegria aos pacientes da Pediatria, outra fundadora do projeto Criança que Sonha, Lúcia Camilo, resume: “Nossa felicidade é muito maior do que a das crianças. É gratificante ver o brilho nos olhos de uma criança quando ela vê sua fantasia, quando se levanta da cama para brincar e desfilar pelos corredores, se esquecendo ali que é paciente e voltando a ser somente criança”.

O Projeto “Criança que sonha” reúne hoje mais de 25 voluntárias que recebem doações de brinquedos, fantasias e materiais para confeccionar e customizar as roupas e perucas, como lãs e linhas. As voluntárias recebem os “pedidos” dos hospitais e levam trajes reservas, com opções de tamanho e personagens, com direito a vários acessórios. Também realizam bazares para arrecadar fundos que são revertidos para materiais e brinquedos (distribuídos no Natal e em outras datas comemorativas). Já atenderam a centenas de crianças internadas nos hospitais pediátricos de Belo Horizonte. Quem quiser conhecer mais o projeto, é só buscar nas redes sociais – Instagram e Facebook – por “projetocriancaquesonha”.

Por Michèlle de Toledo Guirlanda