De acordo com a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES-MG), somente em 2016, cerca de R$ 290 milhões foram gastos com ações judiciais em saúde. Os processos, que cresceram mais de 100% desde 2012, exigem que o governo arque com determinado medicamento ou procedimento, independente da existência das alternativas terapêuticas disponibilizadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS).

Foto: Carlos Severo | Fotos Públicas

Os gastos elevados trazem preocupação para a gestão do Sistema. Mas, quem são as pessoas que movem as ações judiciais? Qual a relação dos profissionais médicos e advogados com estas decisões? E qual a participação da indústria farmacêutica?

Ponderando estas questões, o farmacêutico e doutor em Saúde Pública, Orozimbo Henriques Campos Neto, ex-assessor chefe do Núcleo de Atendimento à Judicialização da Saúde da SES-MG, investigou a percepção dos atores sociais envolvidos nas ações judiciais em saúde e o papel da indústria farmacêutica em Minas Gerais. Os resultados foram apresentados em sua tese defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Saúde Pública da Faculdade de Medicina da UFMG.

O pesquisador diz que o destaque da sua pesquisa de doutorado foi apontar o tamanho das dificuldades geradas pela judicialização e o quanto os sistemas de justiça e de saúde estão vulneráveis ao complexo econômico e industrial da saúde. “O poder judiciário impõe que a gestão siga sua decisão. Mesmo que não seja boa para o Sistema ou o coletivo, já que essas ações judiciais são voltadas, na maioria das vezes, para o contexto do indivíduo”, afirma Campos Neto. “Não tirando as necessidades de olhar para o indivíduo. Mas a soma dessas ações não gera, necessariamente, um coletivo melhor. O recurso fica concentrado nessa área, sendo retirado de todas as outras ações importantíssimas para o SUS, como a Atenção Primária em Saúde”, completa.

Campos Neto ressalta que o problema da judicialização da saúde vai além de atender poucas pessoas. Estas elas conseguem tratamentos de alto custo, que nem sempre são as melhores opções, e que geram mais lucro para o advogado, para o médico e para a indústria farmacêutica, principalmente. “O propósito de resolver um problema na política pública via justiça, na verdade foi um elemento que favoreceu, ainda mais, às indústrias farmacêuticas para que aumentassem seus lucros e não garantiu a resolutividade da assistência a saúde”, declara. Por isso, “o judiciário se coloca dentro do complexo da saúde, em algumas situações, como desorganizador do planejamento no SUS”.

Os atores da judicialização da Saúde

Campos Neto conta que esta pesquisa que deu origem a tese de doutorado é continuação da sua dissertação, feita com base nos dados de ações judiciais da Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais (SES- MG), entre os anos de 1999 a 2009. Durante o mestrado, ele identificou predominância de determinados médicos, advogados e de indústrias farmacêuticas em algumas das 6.112 ações totais. “Além de estarem atuando sempre juntos, as ações eram por medicamentos de custo elevado. Parecia ter uma relação direta para que as ações judiciais acontecessem”, aponta.

De acordo com o pesquisador, o mestrado concedeu dados numéricos da relação desses atores sociais com a judicialização em saúde, mas foi no doutorado, com a análise qualitativa, que sua suposição se tornou real. “Dentro daquele banco de dados, mapiei os principais atores envolvidos, responsáveis para que estas ações surgissem e resultassem em um procedimento ou medicamento pago pelo SUS”, explica. Ele selecionou dez atores – dois profissionais médicos, dois advogados particulares, um defensor público, um promotor de justiça, dois desembargadores e uma paciente – os quais responderam sua entrevista semiestruturada.

A coleta de dados por meio de entrevistas foi feitas em dois ciclos. O primeiro do final de 2011 até metade de 2012 e, depois, retomada em 2014. Para a análise, utilizou-se uma metodologia de pesquisa qualitativa denominada interacionismo simbólico, que procura entender a interpretação que as pessoas têm no cotidiano à medida que se envolvem com o fenômeno. Por exemplo, ainda que a judicialização fosse algo novo para o médico ou o juiz, ao trabalhar com isso, ao longo do tempo eles criavam novas interpretações e mudavam a compreensão sobre o problema.

“No momento de análise, achei interessante como os atores fora da Saúde enfrentam o problema. O desembargador entrevistado deixou claro sua preocupação em buscar tomar decisões com a medicina baseada em evidências”, observa Campos Neto. “Mas, sabemos que a indústria farmacêutica também produz informações técnicas. Então, temos que pensar sobre o limite dos profissionais que não são da área da Saúde buscar informações e não ser, de certa forma, induzido nas decisões”, continua.

Percepção da Judicialização

Segundo o pesquisador, um dos médicos entrevistado deixou claro que tinha uma relação aberta e considerava importante sua relação com a indústria farmacêutica, trabalhando de forma a “educar” os pacientes a usarem determinados medicamentos. “Era uma clara relação comercial com a indústria, que resultava nos pacientes recorrendo a judicialização para que o SUS pagasse por aquele medicamento”, acrescenta.

Mesmo que a outra médica entrevistada tenha mostrado uma visão crítica sobre a relação com a indústria, de acordo com Campos Neto, na fala dos dois, ficou evidente a tensão existente da indústria em cima dos profissionais de saúde, sendo uns mais permissíveis e outros não.

Isto também ficou claro na fala dos advogados, que mostraram sofrer indução da indústria farmacêutica para judicializar. “Apareceu uma nova figura: as associações de pacientes. Muitas vezes, elas contratam advogados para conseguirem os produtos e tratamentos pela via judicial. E um dos advogados chegou a dizer que isso virou um nicho de atuação dos profissionais do direito”, relata Neto.

“Também encontrei destacado no site de um escritório de advocacia de Belo Horizonte que ‘medicamento é um direito constitucional’. Na visão desse grupo, o direito constitucional era conseguir um produto. Não tinham a ideia de assistência à saúde, da rede de cuidados ao paciente”, alerta o pesquisador. “Ou seja, vendiam os serviços de advocacia e favoreciam uma indústria que vendia um produto. Eles ainda listavam os medicamentos que já tinham conseguido por judicialização, como se fosse uma propaganda”, completa. Desta forma, Campos Neto mostra a existência da indução também aos pacientes.

“É importante trazer para a discussão que existem intenções em diversas áreas com as ações judiciais. Pode ter profissionais de saúde se beneficiando com a prescrição, ou com a produção do parecer técnico para o judiciário, por exemplo”, argumenta. Por isso, para o pesquisador, a autocrítica dentro da universidade é importante, já que ela é fonte de consulta do judiciário, sendo, inclusive, remunerada para isso.

Campos Neto destaca, ainda, que a judicialização gera uma mudança institucional, não só no SUS, como no judiciário e na universidade e seus grupos de pesquisa. “A judicialização é um tema multidisciplinar, por isso nós profissionais de saúde temos que debater com os do direito, da administração pública e demais áreas possíveis soluções para o problema”, discorre. Caso contrário, irá surgir uma nova indústria, a da judicialização.

Ele lembra que não dá mais para negar a existência e o impacto da judicialização na Saúde. “A tese serve de alerta para aumentarmos a regulação sobre a influência da indústria nos profissionais de saúde, principalmente, e para que o sistema de justiça entenda como sua decisão pode ser induzida”, conclui.

Por ASCOM Faculdade de Medicina da UFMG